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Full text of "O cavaleiro das mãos irresistíveis : conto em verso"

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Castro,  Eugénio  de 

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O   CAVALEI RC^ 

DAS 

WAOS  IRRESISTÍVEIS 

CONTO  EM  VERSO 

POR 

EUOENIO  DE  CASTRO 


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Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/ocavaleirodasmOOcast 


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► 


OBRAS  DE  EUGÉNIO  DE  CASTRO 


ChrystallisaçÓes  da  Morte,  1884. 

Canções  d' Abril,  1884. 

Jesus  de  Na^areth,  i885. 

Perumbram.  1887. 

Horas  tristes,  1888. 

Oarislos,  i.H  edição,  1890;  2  a  edição,  1900. 

Horas,  i.a  edição,  1801;  2.*  edição,  10.12. 

Silva,  Ia  ed \,á  ,  i8g4  ;  2  *  eaição,  1911. 

Jnterlunio,  1."  edição,  i8<m  ;  2  a  edição,  1911. 

Belkiss.  i.a  edição,  1894 ;  2.»  dição,  1910. 

Tir estas,  iSg5. 

Sagramor,  1895. 

Salomé  e  outros  poemas,  1.»  edição,  f?9Ô ;  2.»  edição,  1911. 

^4  Nereide  de  Harlem,  189'). 

O  /?e/  Galaor,  1897. 

Saudades  do  Céo,  1899. 

Constança,  igoo. 

Depois  da  ceifa,  igoi. 

Poesias  escolhidas,  1902. 

O  melhor  retraio  de  João  de  Deus,  1900. 

.4  Sombra  do  Quadrante ,  1906. 

O  ,4ttHe7  Je  Polycrates,  1907. 

^4  Fonte  do  Satyro  e  outros  pormas .  1908. 

Poesias  de  Goethe,  1909. 

O  Fí/Ao  Pródigo,  1910. 

Noticia  histórica  e  descriptiva  dos  principaes  objectos  de  ourivesa- 
ria existentes  no  Thesoiro  da  Se  de  Coimbra  (  de  collaboraçáo 
com  A.  A.  Gonçalves),  1911. 

Guia  de  Coimbra,  1916. 

O  Cavaleiro  das  mãos  irresistíveis ,  1916. 


O   CAVALEIRO 


DAS 


MÃOS  IRRESISTÍVEIS 


CONTO   EM   VERSO 
POR 

EUGÉNIO   DE   CASTRO 


COIMBRA 

F.   FRANÇA   AMADO,   EDITOR 

1916 


1)esta  edição  fe?-se  uma  tiragem  especial 
de  seis  exemplares  em  papel  Whatman, 
numerados  e  rubricados  pelo  autor. 


AO   GRANDE   ESTATUÁRIO 

ANTÓNIO   TEIXEIRA   LOPES 


«...  las  hermosas  manos  dei  Conde 
Don  Garci  Fernandez,conquistavan 
la  inclinacion  de  todas  las  mugeres, 
por  lo  qual  las  encubria  aquel  Prin- 
cipe  quando  se  las  podiam  ver  per- 
sonas  de  su  atencion.  » 

D.  Luiz  de  Salazar  y  Castro, 
Historia  de  la  Casa  de  Lara,  1. 1, 
pag.  3a. 


Uia  de  Santa  Clara. 

Na  janela 
Já  as  frinchas  se  azulam  como  veias, 
Quando  Dom  Sancho  Sánchez  de  Moscoso, 
Depois  dum  sono  regalado,  acorda 
Ao  cristalino  repicar  dos  sinos, 
Que  tilintam  na  torre  do  mosteiro 
Onde,  entre  círios,  orações  e  rosas, 
As  cinzas  dormem  da  Rainha  Santa. 


l6  O   CAVALEIRO   DAS   MlOS   IRRESISTÍVEIS 

Defronte,  em  Coimbra,  os  sinos  da  cidade 
Associam-se  á  festa  :  uns  galrejando 
Como  creanças  num  jardim  em  maio; 
Outros,  de  ansioso,  de  saudoso  timbre, 
Desatando-se  em  místicos  adeuses, 
Em  despedidas  para  a  eternidade ; 
Outros,  em  Santa  Cruz,  cantando  glória  ; 
E  mais  em  cima,  dominando-os  todos, 
Como  um  aviso  ás  almas  tresmalhadas, 
Os  da  Sé,  retumbando  com  ameaças 
E  rouquidões  de  temporal  distante  . . . 


Tão  doce  despertar  e  tão  alegre 
Não  o  tinha  Dom  Sancho  desde  a  hora 
Em  que  um  fatal  desastre  aos  pés  da  morte 
O  arremessara. 

Desta  feita,  o  moço 
Acordava  sem  dor's,  antes  sentindo 
Um  bem-estar  delicioso  . . . 


Espreguiçou-se 
Com  a  prudência  dos  estropiados, 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  17 

E  a  cada  movimento  ia  notando 

Que  voltava  ao  que  fora,  que  de  novo 

Podia  abrir  os  braços  livremente, 

As  pernas  esticar,  mexer  o  tronco, 

Sem  já  sentir  uma  ligeira  sombra 

Das  guinadas  cruéis  que  longo  tempo 

O  tinham  consumido  nesse  leito, 

Arrancando-lhe  gritos  aflitivos 

E  encharcando-lhe  as  fontes  com  suores  . . . 


Renascia.    Quebrava-o  inda,  é  certo, 
Esse  torpor  que  na  convalescença, 
Quebrando  o  corpo,  quebra  os  maus  desejos, 
Em  troca  suscitando  honestas  ânsias 
De  calmos  dias,  de  leais  afectos ; 
Sentia  ainda  os  olhos  fatigados 
De  tanto  haverem  procurado  embalde 
Uma  estrela  nas  trevas  da  agonia  ; 
Mas  ao  contrário  das  manhas  passadas, 
Em  que,  rendido,  desejava  apenas 
Dormir,  dormir  indefinidamente 
Na  abafada  penumbra  dessa  alcova, 


l8  O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS 

O  que  elle  agora,  inquieto,  apetecia 

Era  a  luz  d'oiro  e  o  ar  livre,  de  diamante. 


Das  nebrinas  rosadas  do  futuro, 
Lindo  cantar  chegava  aos  seus  ouvidos, 
Penugento  cantar  d'alma  sereia, 
Anunciando  em  notas,  que  eram  mimos, 
As  doçuras  dum  próximo  noivado  ; 
E  Sancho,  embevecido,  adormecendo 
Desse  canto  no  berço  flexuoso, 
Cerrava  os  olhos  deliciadamente, 
E  deliciadamente  via  ao  longe 
De  Beatriz  a  virginal  figura 
Deslisando  graciosa  entre  açucenas, 
Ao  cristalino  repicar  dos  sinos  . . . 


O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS  IO, 


II 


Pouco  mais  tinha  Sancho  de  vinte  annos. 


órfão  de  pai  quando  contava  doze, 
Com  sua  austera  mãe  se  recolhera 
A  um  severo  palácio  em  Tordesilhas, 
E  ahi  vivera  como  bom  fidalgo 
Em  descuidosa  mas  honesta  estúrdia, 
Cavalgando,  monteando  e  namorando, 
Até  que  um  dia,  aos  incessantes  rogos 
Dum  primo  seu,  D   Pedro  de  Mendanha, 
Brioso  alcaide-mór  de  Castro-Nunho, 
Do  lusitano  rei  seguindo  as  partes, 


20  O    CAVALEIRO    DAS   MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Na  guerra  se  meteu,  quase  fraterna, 
Que  em  Toro  veiu  a  ter  incerto  fecho. 


Finda  a  batalha,  achou  mimoso  exílio 

Em  Barcelos,  nas  margens  nemorosas 

Do  Cávado  sereno,  cujas  aguas 

A  cada  instante  augmentam  engrossadas 

Pelas  saudosas  lagrimas  que  verte 

Deixando  a  cada  passo  um  encanto  novo. 

Soube  elle  aí  que  os  bens  que  possuía 

Em  Castela,  lhos  tinham  confiscado 

Os  católicos  reis.    Vendo-se  pobre, 

Ele,  que  dias  antes  poderia 

Aos  alqueires  medir  o  oiro  e  a  prata ; 

Vendo-se  aí  sem  lar,  tendo  possuído 

Soberbos  paços  de  ameadas  torres, 

Onde  talvez  ainda,  nessa  hora, 

Se  visse  trapejar  ao  vento  morno 

A  bandeira  co'as  armas  dos  Moscosos ; 

Vendo-se  aí  sem  pão,  tendo  deixado 

As  suas  tulhas  cheias,  que  podiam 

A  farta  sustentar  por  mais  dum  ano 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  21 

Uma  província  inteira  ;  então  lembrou-se 
De  uma  tença  pedir  a  Afonso  Quinto, 
E  com  essa  intenção  pôs-se  a  caminho 
De  Santarém,  onde  poisava  a  corte. 


Passando  em  Coimbra,  com  surpresa  alegre, 
Lá  encontrou  patrícios  e  parentes, 
Exilados  também,  que  o  receberam 
Como  um  querido  irmão  resuscitado. 
Sancho  levava  pressa,  impaciente 
De  alcançar  bom  despacho  ao  seu  pedido ; 
Mas  tão  felizes,  tão  risonhas  horas 
Saboreou  ali,  em  cavalgadas, 
Banquetes  e  serões,  que  a  breve  trecho, 
Mandando  ao  demo  tenças  e  negócios, 
Resolveu  demorar-se  uns  tantos  dias 
E  arranchar  com  os  mais  numa  caçada 
Aos  javalis,  caçada  de  fidalgos 
De  que  era  promotor  activo  e  guapo 
Um  certo  Ruy  de  Sá,  dos  Sás  illustres, 
Tão  destros  em  terçar  guerreiras  armas 
Como  hábeis  em  compor  sonoros  versos. 


22  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Deviam  ser  uns  vinte  os  cavaleiros, 
Que  em  luminoso  amanhecer  de  julho 
Sairam  da  cidade  a  trote  largo. 
Atravessada  a  ponte,  para  a  esquerda 
Tomaram  com  marcial  desinvoltura, 
E  já  da  EspYança  o  monte  iam  subindo 
Quando  o  vivo  morzelo  de  Dom  Sancho, 
Retrocedendo  num  galão  abrupto, 
Rompeu,  desenfreado,  em  correr  doido. 


Era  Sancho  um  acabado  cavaleiro, 
Mas  nesta  occasiao  fatal,  de  nada 
As  equestres  manhas  lhe  serviram  : 
Chapou-se-lhe  o  cavalo,  e  o  pobre  moço 
Violentissimamente  ei-lo  cuspido 
Sobre  os  brutos  calhaus  duma  pedreira, 
Onde  os  amigos  foram  encontrá-lo 
Exânime,  no  chão,  com  um  pé  estroncado, 
Go'as  mãos  escalavradas  e  co'a  fronte 
Amassada,  a  sangrar  por  duas  gaivas. 


O    CAVALEIRO   DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  23 


III 


Perto  dali  ficava  a  nobre  casa 

De  Dora  Guterre  Lopes  que,  apiedado 

Por  tal  desgraça,  recolheu  o  frido 

E  o  ajudou  a  deitar  na  própria  cama, 

Enquanto  a  creadagern,  de  corrida, 

Abalava  á  procura  de  Heitor  Pires, 

Ervanário,  carcunda  e  feiticeiro, 

E  que  além  disso,  entre  Mondego  e  Douro, 

Tinha  fama  de  ser  o  mais  sabido 

Algebrista  da  terra  portuguesa. 


24  O    CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS 

Quando  os  sentidos  recobrou  Dom  Sancho, 
Já  o  grotesco  Heitor  se  fora  embora 
Depois  de  lhe  encanar  o  pé  dorido 
E  de  lhe  haver  bandado  subtilmente 
Cabeça  e  mãos  com  alvas  ligaduras. 
De  branco  mascarado,  do  seu  rosto 
Só  os  olhos  se  viam,  olhos  negros, 
Pasmados  e  febris,  quais  os  do  infante 
Que  exposto  foi  numa  azinhaga  á  noite, 
E  que  ao  luzir  da  estrella  d'alva  chora 
Sem  consciência  da  dôr  que  o  mortifica  ; 
Só  seus  olhos  se  viam  e  seus  lábios 
Repuxados  num  ricto  doloroso 
Que  descobria  a  cintilante  alvura 
Dos  seus  dentes  magníficos,  de  lobo. 


—  «  Onde  estou  eu  f  »  disse  ele,  percorrendo 
Do  tecto,  com  a  vista,  as  grossas  traves, 
E  as  paredes  forradas  de  precioso 
Guadamecil,  cujos  lavor's  metálicos 
Vivamente  brilhavam  na  penumbra 
Tépida  e  aveludada  do  aposento. 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  25 

Sobre  um  solene  escano  de  carvalho, 

De  ferro  chapeado,  qual  se  fora 

Porta  de  cubicada  fortaleza, 

Uns  calções,  um  pelote  esfarrapado, 

E  um  tabardo  poeirento,  todos  cheios 

De  sangue  coagulado,  rediziam 

Da  desastrosa  queda  a  violência. 


—  «  Onde  estou  eu  ?  » 

Torcendo-se  com  dores, 
A  máscara  voltou  e  viu  ao  lado, 
Ao  pé  de  si,  um  velho  cabeludo 
De  gigantesco  mas  risonho  aspecto, 
Imóvel  e  vestido  gravemente 
Com  golpeado  gibão  de  setim  preto, 
Sobre  o  qual  faiscava  uma  cadeia 
De  fuzis  cravejados  de  esmeraldas. 
Era  o  bom  Dom  Guterre,  o  nobre  alcaide 
De  três  fortes  castelos  e  abastado 
Senhor  de  quatro  vilas  portuguesas, 
Do  conselho  d'el-rei  e  pertencente 
A  veneranda  estirpe  de  Azevedos. 


20  O    CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS 


«  Como  estaes  f  »  diz  a  medo  Dom  Guterre. 


—  «  Morro,  morro  de  sede !  »  volve  Sancho. 


Duma  credencia,  toma  o  ancião  hirsuto 
Um  jarro  castelhano  d'alva  prata, 
Bem  lavrado  a  cinzel,  e  enche  uma  copa 
Que  o  doente  febril  bebe  dum  trago. 


—  «  Mais  !   Por  piedade,  mais  I  » 

E  esvaziada 
Segunda  copa,  o  moço  os  olhos  cerra, 
Deliciado  momentaneamente. 
Mas  as  dores  recrescem  de  tal  geito 
Que,  embora  sofredor,  o  pobre  Sancho 
Já  não  tem  mão  em  si  que  não  prorompa 
Em  altos  gritos  de  animal  trilhado. 


Três  longuíssimas  noites  e  três  dias 
Deslisaram  morosos  como  lesmas, 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  1~] 

Sem  que  a  tanto  sofrer  chegasse  alívio. 
E  só  depois,  já  quando  se  esgotava 
Do  suspeito  ervanário  o  misterioso 
Repertório  de  emplastros  e  de  unguentos, 
É  que  Sancho  cobrou  ténues  melhoras, 
E  conheceu  a  extrema  caridade 
Dessa  nobre  família  que  o  acolhera 
Como  a  dilecto  filho  ha  muito  ausente. 


Secundando  o  fervor  de  Dom  Guterre 

No  empenho  de  abrandar  as  dor's  de  Sancho, 

Que  eram  dor's  de  ferido  e  expatriado, 

Com  materna  piedade,  ao  pé  do  leito, 

Docemente  velavam,  noite  e  dia, 

Do  bom  fidalgo  a  majestosa  esposa, 

Dona  Mór  de  Menezes,  sua  filha, 

A  suave  Beatriz,  e  uma  parenta, 

Dona  Yseu  de  Aboim,  velha  senhora 

Que,  tendo  enviuvado  e  sendo  pobre, 

Naquelle  paço  generoso  entrara 

Onde  as  portas  do  céo  abria  a  todos 

Confeccionando  celestiais  compotas 

E  angélicas,  translúcidas  gelêas. 


28  O    CAVALEIRO   DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Dia  sim,  dia  não,  era  infalível 
Um  irmão  de  Dom  Guterre,  o  rubicundo 
Dom  Bento  da  Santíssima  Trindade, 
Frade  crúzio  e  varão  de  grandes  letras, 
Tão  grande  canonista  como  exímio 
Cultor  da  genealógica  ciência. 


Quando  ás  eternas  noites  desveladas 

Outras,  mais  bem  dormidas,  sucederam, 

E  a  estas,  mansos,  aliviados  dias, 

De  Sancho  o  quarto  enorme  transformou-se 

Em  locutório  amável  da  família. 

De  lá  não  se  arredava  um  só  instante 

O  hercúleo  Dom  Guterre,  e  as  três  senhoras 

Lá  se  acolhiam  do  calor  da  sesta, 

Conversando,  bordando  e  preparando 

Os  fios  com  que  Heitor  pensava  o  doente. 


Era  o  bom  Dom  Guterre  tão  brilhante 
Conversador  como  na  mocidade 
Bravo  guerreiro  fora ;  e  assim,  no  intuito 
De  arejar  a  loquela  e  ao  mesmo  tempo 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  20. 

De  distrair  o  hospede,  contou-lhe 
Em  breve  prazo  toda  a  sua  vida, 
Longa  epopêa  de  façanhas  altas 
Com  sangue  moço  e  generoso  escritas 
Na  Alfarrobeira  e  na  caiada  Ceuta ; 
Epopêa  marcial,  entrecortada 
De  episódios  d'amor  que  Sancho  ouvia 
Com  intVesse  infantil,  prefrindo  a  todos 
Aquelle  em  que  o  fidalgo  lhe  pintava 
Certa  escrava  d' Arzila,  esbelta  e  lânguida, 
Dançando  á  tarde  religiosas  danças, 
Ao  som  do  adufe  que  rufava  um  moiro, 
Junto  duma  cisterna,  entre  palmeiras. 


Depois  de  ouvir,  chegou  a  vez  a  Sancho 
De  dar  conta  de  si  :  sendo  tão  novo, 
Pouco  tinha  a  dizer,  mas  esse  pouco 
Bastou  para  que  o  crúzio  descobrisse 
Que  era  com  Dom  Guterre  quarto  primo 
Do  joven  castelhano. 

Nessa  noite, 
Com  que  ajoelhada  adoração  e  enlevo, 


30  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Com  que  ternura  Sancho  ouviu  a  loira 

E  láctea  Beatriz  sair  da  alcova 

Dizendo  afável :  —  «  Boas  noites,  primo  !  » 


IV 


Passou-se  isto  na  véspera  do  alegre 
Dia  de  Santa  Clara.    O  moço  amante 
Pensando  em  Beatriz  cerrou  os  olhos, 
Dormiu  com  a  inocência  dum  menino, 
Vendo-a  constantemente  nos  seus  sonhos, 
E  a  pensar  nella  despertou  ditoso 
Ao  cristalino  repicar  dos  sinos. 


Amava-a  ?    Sim.   Humilde  e  fortemente 
A  amava,  embora  mal  a  conhecesse  . . . 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  3l 

Mal  lhe  tinha  falado  um  dia  ou  outro, 
Mas  a  sua  lindeza  era  tão  pura, 
A  sua  voz  tão  cheia  de  amavíos 
E  os  seus  amaviosos  olhos  verdes 
Tão  enluarados  de  candura  e  sonho, 
Que  tudo  nella  revelava  logo 
Um  desses  raros  seres  que,  exilados 
No  mundo,  vivem  conhecendo  apenas 
Ânsias  de  perfeição  e  de  beleza. 
P'ra  adivinhar  os  lúcidos  tesoiros 
De  amor  e  mansidão  que  ella  possuía, 
Não  precisara  Sancho  de  falar-lhe, 
De  espreitar,  deslumbrado,  a  sua  alma, 
De  sondar  seus  mais  íntimos  desejos  : 
Bastára-lhe  só  vê-la  aérea  e  branca, 
Sempre  alheada  e  loira  qual  se  fora 
Um  anjo  anunciador  d'olhos  aquáticos 
Passando  ao  luar,  numa  missão  divina. 


Nunca  Sancho  sentira  o  que  sentia. 
Era  mais  do  que  amor,  era  uma  alta 
E  funda  adoração  extasiada, 
Um  quase  medo  de  a  possuir  um  dia, 


32  O    CAVALEIRO   DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Como  se  fosse  um  sacrilégio  tê-la, 

E  um  desejo  infinito,  uma  ânsia  doida 

De  sofrer  toda  a  casta  de  martírios 

Só  p'ra  alcançar  o  saboroso  prémio 

De  oscular  castamente,  de  joelhos, 

Dos  seus  chapins  de  lhama  a  aguda  ponta. 


Assim  pensava  Sancho  na  penumbra 
Da  sua  alcova,  ao  repicar  dos  sinos, 
Quando  viu,  no  rectângulo  doirado 
Da  porta  que  se  abrira  de  repente, 
Recortada  a  figura  de  Anna  Mosca, 
Ama  de  Beatriz. 

—  «  Como  estaes  hoje  ?  » 
Diz  a  boa  molher,  no  quarto  entrando. 


—  «  Deus  te  pague  o  cuidado !  »  volve  Sancho 

«  Ainda  que  eu  de  rojo  vos  seguisse, 

«  A  ti  e  aos  teus  senhor  s,  a  vida  inteira, 

«  Nem  metade  da  divida  pagara 

«  Que  vos  devo . . . 

«  Tão  bem  passei  a  noite 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS   IRRESISTÍVEIS  33 

«  E  sinto-me  tão  bem  agora  mesmo, 
m  Que  já  comigo  concertei  ha  pouco 
«  Desta  cama  sair  daqui  a  um  instante.  » 


—  a  Louvado  seja  Deus  t  »  atalha  a  serva  : 
«  Grande  boda,  vereis,  farão  meus  amos 
«  Festejando  com  gosto  essas  melhoras. . . 
«  Todos  vos  querem  nesta  casa . . . 

—  «  Todos f  » 
Pergunta  Sancho.    «  Todos  ?   E  até  mesmo 
«  Beatriz  ?  » 

—  «  E  porque  não  f    Santa  acabada, 
«  É  um  saquinho  d' amor  a  sua  alma, 
«  Saquinho  aberto  para  toda  a  gente. . .  » 


—  «  E  que  eu  quisera  só p'ra  mim  aberto  t  » 
Diz  Sancho  lá  consigo. . .    E  continua  : 

—  «  Olha,  falemos  dela. . .    Acho-a  tão  triste, 
«  Tão  fora  de  si  mesmo,  que  parece 

«  Que  tra%  a  alma  inocente  noutro  mundo. . .  » 
3 


34  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

—  «  Tem  na  no  céu  »,  diz  Ana ;  «  todos  sabem, 

«  Senhor  Dom  Sancho,  que  ela  quer  ser  freira, 

«  Meter-se  em  Santa  Clara  ...    E  lá  estaria 

«  Ha  muitos  meses  já,  se  o  pai  choroso 

«  Lhe  não  pedisse,  quase  de  joelhos, 

«  Que  o  não  deixasse  enquanto  fosse  vivo, 

«  Que  não  partisse  sem  fechar -lhe  os  olhos  ...» 


Ouvindo  tal  e  ouvindo  ao  mesmo  tempo 
O  cristalino  repicar  dos  sinos 
Que  em  Santa  Clara,  na  morena  torre, 
Chamando  os  fieis,  anunciavam  rindo 
Místicos  gozos,  hálitos  de  incenso, 
Doces  eflúvios  de  esmaiadas  rosas, 
Suspiros  d'orgao,  d'embriagar  fraguedos, 
Doces  palpitações  de  círios  alvos 
Reflectidas  no  oiro  das  casulas 
E  nas  mansas  safiras  da  custódia ; 
Ouvindo  tal,  parecia-lhe,  a  Dom  Sancho, 
Que  na  sua  cabeça  desvairada 
Ruía,  aos  golpes  de  cem  catapultas, 
Uma  cidade  imensa  de  cem  portas  ! 


O    CAVALEIRO   DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  35 

Ana  Mosca  partira . . . 

O  cavaleiro, 
Rendido  por  cruel  abatimento, 
Longo  espaço  ficou  cismando  triste 
Na  prematura  ruína  dos  seus  sonhos  . . . 


—  «  Ter  Deus  como  rival  t  »  dizia  Sancho, 
Cheio  de  íntima  dor ..."  Deus  inclemente, 
«  Se  para  Esposa  a  tinhas  elegido, 
a  Porque  è  que  tão  formosa  ma  mostraste  f 
«  Porque  não  morri  eu  antes  de  vê-la  ?  » 


Mas  de  repente,  em  revoltado  assomo, 

Sobrepondo  ao  desânimo  do  amante 

O  audacioso  brio  do  soldado, 

A  si  mesmo  se  anima  e  se  encoraja, 

Arquitectando  traças  engenhosas 

De  conquistar,  soberbo,  a  torre  ebúrnea 

Dentro  da  qual  Beatriz  se  recolhera. 

Enterrando-se  viva  num  mosteiro, 

Sacrificando  os  seus  cabelos  d'oiro, 

Deixando  o  mundo,  o  que  buscava  ela  ? 


36  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

—  Aproximar-se  da  divina  gloria  ; 
Mas  o  amor,  o  amor  forte  e  verdadeiro 
Também  conduz  a  Deus  (pensava  Sancho  ) ; 
O  amor  verdadeiro  é  uma  sagrada 
Comunhão  de  bondade  e  de  beleza, 
E  aos  ouvidos  de  Deus,  sorvido  e  dado 
Num  sublime  delírio  de  ternura, 
Um  longo  beijo  é  uma  oração  fremente, 
Uma  ante-visão  da  glória  eterna. 


Não,  não  queria  Sancho  desviá-la, 

A  sua  amada,  do  bom  Deus  piedoso, 

Mas  só  que  ela  mudasse  de  caminho 

Para  ascender  á  Bemaventurança  ; 

Que  o  aceitasse  como  companheiro 

Nessa  radiosa,  mística  viagem 

Que  os  dois  fariam,  trémulos,  seguindo 

Por  doce  estrada  de  clarões  e  aromas, 

Coroados  de  flor's,  rezando  beijos, 

E  erguendo  á  noite,  como  grandes  fachos, 

Nas  próprias  mãos  os  corações  ardentes. 


O    CAVALEIRO   DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  3j 


Nessa  manhã,  depois  do  curativo, 
A  rogo  seu,  foi  Sancho  transportado 
Para  uma  sombra  do  jardim  . . .    Sentaram-nor 
Entre  coxins,  num  cadeirão  de  espaldas, 
E  aí  lhe  foi  servido  um  lauto  almoço 
Cujas  finas  vitualhas  rescendiam, 
Tentando  mortos,  em  sonoras  pratas. 
Dom  Guterre  abancara  ao  pé  de^Sancho, 
E  comia  também,  falando  sempre". . . 


Sobre  a  mesa  corria  uma  latada 
Toda  folhuda,  donde  a  luz  descia, 


38  O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS 

Sedosa  e  mansa,  como  a  dum  santuário  ; 
E  quando  a  viração  morna  e  indolente 
Prepassava  entre  os  pâmpanos  espessos, 
No  chão,  a  sombra  azul,  toda  ocelada 
D' oiro,  como  um  pavão  armado,  tinha 
Frémitos  lentos  e  macios  d'agua  . . . 
Do  Mondego  nos  choupos,  as  cigarras, 
Nos  olivaes,  as  rolas  gemebundas, 
E  sobre  as  alfazemas  perfumadas 
As  doiradas  abelhas  sussurrantes, 
Celebravam  em  coro  a  calma  adusta  . . . 
Mas  refrescando  o  ar,  ali  bem  perto, 
Uma  fonte  cantava,  antiga  fonte, 
Aonde  um  São  Miguel,  de  lança  em  riste, 
Dominava  um  Diabo  monstruoso 
Cuja  limosa  boca  vomitava 
Uma  espadana  d' agua  diamantina 


—  «Ah!  como  é  bom  viver  ! .. .  e  quanto  eu  dera 
«  Para  ter  neste  instante  a  vossa  idade !  » 
Disse  o  velho,  enxugando  o  seu  bigode 
Que  uma  golada  de  espumoso  vinho 
De  rubis  orvalhara,  e  saboreando 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  39 

O  almoço  e  o  dia  com  egual  deleite  . . . 

—  «O  peor ...  o  peor  é  eu  estar  tão  ruço  ...» 

Continuou  ele  com  melancholia  : 

«  Amigo,  é  para  vós  que  está  a  vida  í  » 


Dizendo  isto,  o  bom  e  nobre  velho 
Olhava  fixamente  para  Sancho 
Cujo  rosto,  já  sem  as  ligaduras, 
Todo  resplandecia  de  beleza, 
Uma  beleza  insinuante  e  máscula 
De  procônsul  romano,  moço  e  forte. 


Fitando  Sancho  demoradamente, 
Reparando  no  corte  imperioso 
Daquela  boca  fresca  e  voluptuosa 
Que  dizia  o  desejo  impaciente 
De  saborear  da  vida  os  frutos  todos ; 
Reparando  no  brilho  desses  olhos 
Cheios  de  entusiasmo  e  de  ousadia, 
Uma  esp'rança  afagava  Dom  Guterre  : 
A  espVança  de  que,  em  breve,  sua  filha, 
Ao  ver  Sancho  afinal  desmascarado, 


40  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Docemente  vencida  p'lo  prestigio 

De  tão  bela  e  radiosa  mocidade, 

Esqueceria  os  místicos  projectos 

Que,  endoidecendo-a  com  subtis  promessas, 

Iam  tramando  o  fim  duma  família 

Das  mais  ricas  do  reino  e  mais  gloriosas. 


Foi  animado  dessa  rósea  esp'rança 
Que  ele  dali  se  foi,  tanto  que  ao  longe 
Viu  assomar  a  filha. 

Regressando 
De  Santa  Clara,  a  moça  caminhava 
Branca  e  toda  de  branco,  com  uma  túnica 
Tão  desataviada  e  tão  modesta 
Que  mais  par'cia  um  hábito  de  monja 
Do  que  vestido  de  donzela  nobre. 
De  precioso  só  nas  mãos  trazia 
Umas  pesadas  contas  d'ámbar  pálido 
Donde  pendia  um  crucifixo  d'oiro. 


Estremeceu,  ao  vê-la,  o  cavaleiro 
E  ocultou  vivamente  no  tabardo 


O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS  41 

Suas  mãos  entrapadas,  não  fosse  ela 
Com  aqueles  trambolhos  desgostar-se. 
Mas  a  fluida  Beatriz  vinha  tão  longe 
Dos  homens  e  da  vida,  que  somente 
O  viu  quando  ao  pé  dele  era  chegada. 
Como  ave  assustadiça,  divisando 
Pela  primeira  vez  tão  belo  rosto, 
Pára,  corando,  hesita,  e  só  tem  força 
Para  dizer  com  voz  sumida  e  trémula  : 

—  «  Ah! ...  como  estais  f  » 

—  «  Melhor,  infelizmente. . . » 
Diz  o  moço.   E  Beatriz,  ingénua,  volve  : 

—  «  Infelizmente  ?  » 

—  «  Infelizmente,  é  certo, 
Exclama  Sancho  com  sincera  angústia, 
«  Infelizmente,  porque,  emfim  curado, 
«  Sairei  daqui  e  deixarei  de  ver-vos  l  » 


Uma  onda  de  pudor  soergue  os  seios 
Da  tímida  Beatriz,  tinge  de  rosa 
Suas  pálidas  faces  e  mareja 
De  lágrimas  rogais  seus  olhos  verdes . 


4»  O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS  IRRESISTÍVEIS 

—  «  Ofendi-voSy  bem  vejo . . .    Perdoae-me  ! 
Dizia  o  cavaleiro  humildemente . . . 
«  Perdoaime,  Beatri^ . . .    Não  vos  mereço. 
«  Ás  estrelas  não  chega  a  voj  dos  sapos ...  » 


De  olhos  no  chão,  Beatriz  petrificada 
Era  uma  estátua  ali.   Penhor's  de  vida, 
Só  se  lhe  viam  no  arquejar  do  peito 
E  nas  brilhantes,  silenciosas  lágrimas, 
Que  lhe  corriam  copiosamente 
Das  transparentes  pálpebras  descidas  . . 


o  Perdoai-me,  Beatriç  t  »  tornava  Sancho. 


Chorando,  nada  a  moça  respondia. 
De  súbito,  porém,  limpando  os  olhos 
E  animada  por  essa  misteriosa 
Força  com  que  a  fé  viva  vigoriza 


O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS  IRRESISTÍVEIS 

Os  ser's  mais  débeis  nos  mais  rudes  lances, 

Ei-la  que  diz  com  singular  firmeza : 

—  «  Meu  muito  amado  irmão  em  Jesus-Christo, 

«  De  joelhos  vos  peço  e  vos  suplico 

«  Que  em  mim  vejais  apenas  uma  escrava 

*  Do  alto  Deus  a  quem  fif  solemnes  votos  !  » 

E  afastou-se,  osculando  as  contas  d'ámbar . . . 


VI 


Pouco  depois,  num  abafado  dia 
De  suão  abrasador,  roncava  o  ilustre 
Dom  Guterre,  dormindo  a  sua  sesta, 
Quando  acordado  foi  p'la  voz  do  obeso 
Dom  Bento  da  Santíssima  Trindade. 


44  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

—  «  A  pé  l   A  pé  í  dizia  o  crúzio.    Erguei-vos 

«  E  abri  esses  ouvidos  bem  abertos, 

«  Que  vos  trago  uma  nova  de  importância  I  » 


O  fidalgo  sentou-se  então  na  cama, 

Os  olhos  esfregou,  espreguiçou-se, 

Três  vezes  bocejou  e,  finalmente, 

Como  quem  salta,  contrariado,  a  um  tanque, 

Em  fralda,  para  o  chão  pulou  num  pulo 

Que  fez  estremecer  a  casa  toda. 


Numa  vasta  cadeira  espapaçado 

E  enchugando  o  cachaço  d'elephante 

Onde  o  suor  brilhava  em  camarinhas, 

Dom  Bento,  quando  viu  o  irmão  vestido, 

Co'a  fofa  e  guedelhuda  mão  puxou-o 

Pela  golpeada  manga  do  pelote, 

E  gravemente  disse-lhe  em  voz  baixa  : 

—  «  Esse  primo  Dom  Sancho,  é  necessário 

•  Pô-lo  a  andar  quanto  antes  desta  casa  !  » 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS   IRRESISTÍVEIS 

Abrindo  a  boca  num  bocejo  novo, 
Dom  Guterre  os  seus  olhos  arregala 
Sem  nada  perceber. 

Então  o  crúzio 
Elucida-o  : 

—  «  Sabeis  como  Dom  Sancho 
«  Ha  dias  me  falou  de  seus  maiores, 
«  E  como  do  que  ouvi  deduzi  logo 
«  O  parentesco  que  com  ele  temos ; 
«  Mas  o  que  não  sabeis,  nem  eu  sabia, 
«  É  que  esse  moço,  por  seu  pai,  descende 
■  Do  celebrado  e  voluptuoso  conde 
x  Dom  Garcia  Fernándej,  alto  príncipe 
«  Cujas  mãos  diabólicas  possuíam 
«  O  funesto  poder,  o  poder  mágico 
«  De  endoidecer  d' amor  as  mulher' s  todas, 
«  Todas  I  velhas  e  novas,  sem  difrença, 
«  A  ponto  que  ele  próprio  as  escondia, 
«  Para  evitar  tragédias,  se  avistava 
«  Qualquer  nobre  matrona  já  caduca  .  .  . 
«  Esse  conde  morreu,  é  certo,  ha  muito, 
«  Porém,  o  venerando  manuscrito 
«  Onde  forra geei  estas  noticias 
«  Acrescenta  —  abri  bem  esses  ouvidos, 


46  O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS 

«  Que  ê  nisto  que  está  toda  a  gravidade  !  — 
«  Acrescenta  que  a  mágica  influência 
a  Das  mãos  de  Dom  Garcia  continua 
o  Em  todos  os  varões  seus  descendentes  ! 
«  Aqui  tendes  !   E  agora  com  prudência 
«  Se  quereis  evitar  um  grande  escândalo, 
«  Imponde  sem  demora  o  castelhano, 
«  E,  antes  disso,  ordenai  ao  curandeiro 
«  Que  não  lhe  desentrape  as  mãos  p'rigosas 
«  Emquanto  hóspede  fôr  deste  palácio  !  » 


Com  seu  alto  e  risonho  cepticismo 

Dom  Guterre  exclamou,  de  mão  na  ilharga  : 

—  «  Pois  quê  ?  acreditais  nessas  patranhas  f  » 


—  «  Patranhas,  não !  »  atalha  logo  o  crúzio, 
Aprumando-se,  grave,  na  cadeira  : 
«  O  auctor  do  manuscrito  onde  li  isto 
«  Foi  um  sério  varão,  honesto  e  sábio, 
«  Incapa?  de  mentir ;  e  a  rajão  mesmo 
«  Nos  observa  que  o  caso,  sendo  estranho, 
«  Bem  pode  ter  seus  visos  de  verdade. 


O    CAVALEIRO   DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  47 

«  Reparai  bem  :  por  seu  variado  aspecto, 

«  P'la  própria  cor  e  pelos  movimentos, 

a  Mãos  ha  que  são  fieis  espelhos  d' almas. 

«  Ha  mãos  contentes,  como  ha  mãos  bisonhas, 

«  Mãos  frívolas  e  mãos  meditativas, 

«  Umas  ingénuas,  outras  dtpravadas. 

«  Eco  e  instrumento  de  paixões  diversas, 

a  É  a  mão  que  maldif  e  que  abençoa, 

1  É  a  mão  que  mata  e  a  mão  que  acaricia, 

«  É  a  mão  que  sustém  e  que  despenha ; 

«  Jubilosa,  se  dá,  triste,  se  pede, 

«  Lúbrica,  ao  afagar  desnudo  flanco, 

«  Piedosa,  ao  abrochar  fria  mortalha, 

«  Enérgica,  empunhando  um  gládio  heróico, 

a  Frouxa,  embainhando  uma  vencida  espada, 

«  Receosa,  apalpando  um  filho  doente, 

«  Vilissima,  compondo  atro?  veneno, 

«  Puríssima,  enfeitando  um  altar  com  flores ! 

«  Vede  que  expressão  vária  as  mãos  acusam 

«  Conforme  rejam,  pálidas,  erguidas, 

«  Ou  se  torcem,  convulsas,  com  remorsos, 

«  Ou,  estranguladoras,  se  enclavinham, 

«  Ou  acariciadoras,  se  aveludam, 

«  Ou  se  espalmam,  com  os  dedos  distendidos, 


48  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

«  Numa  suprema  crise  de  amargura, 

«  Como  as  da  Santa  Virgem  no  Calvário  l 

«  As  mãos  falam,  irmão,  as  mãos  revelam 

«  Tudo  quanto  cá  dentro  está  escondido, 

«  E,  quando  eloquentes,  tanto  podem 

«  Conduçir-nos  ao  Céo  como  ao  Inferno  !  » 


—  *  Se  o  que  direis  das  mãos  é  verdadeiro, 
Com  ironia  atalha  o  velho  alcaide, 
•  Bem  devo  eu  esconder  estas  que  vedes, 
«  Não  me  vão  elas  chocalhar  pylo  mundo 
«  O  saco  de  misérias  da  minfralma  ...» 


—  o  Por  Deus !  senhor  irmão,  não  tombeis  d'isto !  » 

Diz  Dom  Bento.    «  Oxalá  que  aqui  em  breve 

«  Não  se  junte  a  Desgraça  co'a  Vergonha  t 

«  Cumpri  o  meu  dever !   Ride  á  vontade 

«  Já  que  entendeis  que  o  caso  é  para  risos  ...» 


E,  furioso,  agastado,  foi-se  embora. 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  49 


VII 


Assim  que  o  irmão  partiu,  foi  Dom  Guterre 
Contar  logo  ás  senhoras  quanto  ouvira. 


Achavam-se  elas  todas  no  discreto 
«  Quarto  da  fruta  »,  vasta  e  fresca  sala 
De  cujo  teto,  roxos  e  doirados, 
Pendiam  grandes,  belos  cachos  d'uvas, 
Futuro  mimo  de  hibernais  merendas. 
Fiava  Dona  Mór  ;  Beatriz,  atenta, 
Bordava  ao  bastidor  um  brasão  d'armas, 
Na  argêntea  lhama  dum  xairel  de  gala, 
E  Dona  Yseu  tocava  a  dobadoira  .  .  . 


Ao  contrário  do  que  ele  supusera, 
A  notícia  trazida  pelo  crúzio, 
4 


50  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Longe  de  as  fazer  rir,  deixou  nas  damas 

Uma  funda  impressão  terrificante. 

Debalde  Dom  Guterre  as  excitava, 

Tecendo  sobre  o  caso  mil  facécias, 

Que  da  esposa  e  da  filha  rudemente 

Os  sensíveis  ouvidos  melindravam, 

Como  anedotas  vãs,  inoportunas, 

Contadas  numa  câmara  mortuária. 

Dona  Mór,  com  o  cenho  carrancudo, 

Acremente  falava  da  imprudência 

De  dar  poisada  a  um  desconhecido; 

A  velha  Dona  Yseu,  dissimulando 

Toda  a  perturbação  que  lhe  ia  n'alma, 

Murmurava  palavras  de  esconjuro  ; 

E  Beatriz,  pensando  na  delícia 

De  se  ver  no  mosteiro  dos  seus  sonhos, 

Bem  longe  das  torpezas  desta  vida, 

Distraída,  picava-se  co'a  agulha 

E  no  lenço  enxugava  o  dedo  em  sangue  . . . 


Desapontado  então  e  acastelando 

Graves  e  filosóficos  juízos 

Sobre  a  simplicidade  das  mulheres, 


O    CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS  5l 

Foi-se  o  velho  d'ali  e  encaminhou-se 

Para  o  quarto  de  Sancho  a  passos  lentos. . . 


Era  excelente  o  humor  que  nesse  instante 
Animava  o  mancebo.   Muito  embora 
Quatro  dias  houvessem  deslisado 
Sem  que  ele  visse  a  delicada  prima, 
Sem  lhe  ter  escutado  a  voz  ao  menos, 
Funda  alegria  lhe  doirava  o  peito, 
Nascida  do  palpite  inexplicável, 
Palpite  que  era  quase  uma  certeza, 
De  que  veria  em  breve  os  seus  anceios 
Docemente  escutados,  de  que  em  breve 
Co'a  sua  linda  noiva  ajoelharia 
Aos  pés  dum  altar  em  cujo  supedaneo 
Dom  Bento  da  Santíssima  Trindade, 
Resplandecente  d'oiro  e  de  diamantes, 
Lhes  lançaria,  sumptuoso,  a  benção, 
Ao  cristalino  repicar  dos  sinos  . . . 


Nesses  sonhos  d'amor  se  deliciara 
Sancho  durante  passageiras  horas, 


52  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

E  delles  viera  numa  plenitude 
De  alegria  que,  ardente,  resumbrava, 
Ao  falar  com  o  sogro  presuntivo, 
P'la  animação  dos  olhos  e  dos  gestos 
E  sobretudo  p'la  eloquência  estranha 
Que  fazia  faiscar  suas  palavras. 


Resvalara  a  conversa  para  a  luta 
Ferida  em  Toro  havia  pouco  tempo, 
E  como  o  velho  desejasse  muito 
Notícias  ter  da  épica  aventura 
De  Duarte  d' Almeida,  o  bravo  Sancho, 
Que  desse  lance  fora  testemunha, 
Tudo  pintou  em  pinceladas  vivas, 
Pondo  viva  defronte  do  fidalgo 
A  admirável  figura  do  alfer's-martir, 
Cheio  de  heróico  ardor,  cheio  de  sangue, 
Segurando  com  os  dentes  e  com  os  cotos 
A  bandeira  da  pátria  lusitana, 
Emquanto  as  suas  pobres  mãos  cortadas, 
Brancas,  exangues  como  lírios  doentes, 
Pisadas  eram  pelos  inimigos 
Que  de  roldão  fugiam  desvairados. 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  53 

Enaltecendo  a  alheia  valentia, 
Sancho,  inconsciente,  enaltecia  a  sua, 
Tal  o  calor  com  que  evocava  aos  gritos 
Os  feitos  de  maior  heroicidade. 


Ouvindo-lhe  a  espantosa  narrativa 
Em  que  transparecia,  pura  e  clara, 
A  beleza  sublime  da  sua  alma 
Ao  mesmo  tempo  ardente  e  compassiva, 
Mais  Dom  Guterre  achava  calumniosa 
A  suspeita  aventada  por  Dom  Bento, 
E  mais  se  lhe  arreigava  a  doce  idêa 
De  fazer  desse  nobre  cavaleiro 
O  noivo-redentor  de  sua  filha. 


O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS 


VIII 


No  entanto,  as  três  senhoras  aterradas 
Com  o  que  Dom  Guterre  lhes  dissera, 
Interrompido  haviam  seus  trabalhos 
E  cada  uma  delas,  recolhendo 
A  sua  própria  alcova,  procurava 
Na  meditação  grave  e  no  silêncio 
Qualquer  meio  eficaz  de  defender-se 
Das  tentações  do  joven  desterrado. 


A  altiva  Dona  Mór,  em  cujos  olhos 
Crescera  a  glacial  severidade 
Com  que  os  seus  familiares  oprimia, 
Era  uma  dama  de  altas,  intangíveis 


O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS  55 

Mas  frígidas  virtudes.    Orgulhosa, 

Seu  orgulho  tolhia  na  sua  alma 

O  florejar  dos  sentimentos  meigos. 

De  mães  e  esposas  sempre  claro  espelho, 

Nem  uma  vez  a  sofreada  estima 

Que  votava  ao  marido  afectuoso 

Se  abrira  num  sorriso  de  ternura ; 

E  o  invariável  beijo  que  ela  punha 

Na  ebúrnea  testa  da  graciosa  filha, 

Quando  a  loira  Beatriz  ia  deitar-se, 

Tinha  a  dura,  metálica  frieza 

Dum  firmai  carregando  em  branda  cera, 

Era  como  que  o  selo  com  que  á  noite 

Invariavelmente  chancelava 

Seus  direitos  de  mãe  e  de  senhora. 


D'alma  e  corpo  insensível,  hibernando 
Em  permanente  e  rígida  apatia 
De  sentidos,  jamais  se  lhe  exaltara 
Um  desejo  no  corpo,  um  anceio  n'alma, 
Jamais  se  lhe  abrasara  o  frio  sangue 
Na  visão  dum  capricho  adulterino  ; 
E  havia  então  de  ser  agora,  quando 


56  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Se  acercava  a  velhice,  após  tão  lisa, 
Tão  serena  e  tão  límpida  existência, 
Que  ela,  esquecendo  tudo,  desceria 
Do  inferno  os  degraus  incandescentes, 
Por  duas  mãos  infames  arrastada  ? 
Não  1    Não  era  possível ! 

—  «  No  entretanto,  * 
Pensava  Dona  Mór,  «  se  nenhum  medo 
a  Tenho  dos  homens,  já  não  digo  o  mesmo 
«  Das  manhas  e  artifícios  do  Diabo, 
«  Que  entrando  em  severíssimas  clausuras 
n  E  alcançando  recônditos  cenóbios, 
«  Tanta  ve%  ja$  ruir  da  castidade 
«  As  mais  inexpugnáveis  fortalezas ! 
«  E  pode  alguém  ter  dúvidas  acaso 
m  Sobre  a  origem  satânica  do  torpe 
«r  Do  execravel  poder  das  mãos  de  Sancho  ?  » 


Estas  razões  seguindo,  a  nobre  dama 
Comsigo  mesmo  ali  determinava 
Partir  co'a  filha  para  a  sua  quinta 
De  Vinhas  Mortas,  caso  Dom  Guterre 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS   IRRESISTÍVEIS  5"] 

Não  despedisse  em  vinte  e  quatro  horas 
O  moço  dos  lascivos  sortilégios. 


Dona  Yseu  de  Aboim,  vetusta  dona, 

Se  os  não  tinha,  roçava  p'los  setenta, 

Circumstáncia  cruel  que  deveria 

Excluí-la  dos  p'rigos  iminentes. 

Mas  costumada  a  ouvir  a  todo  o  instante 

( Sem  perceber  a  troça  do  estribilho  ) 

Que  estava  otimamente  conservada, 

Que  humilhava  as  mocinhas  mais  viçosas, 

Intimamente  emfim  se  convencera 

De  que  as  mãos  liberais  do  bom  Destino, 

Dando-lhe  uma  infinita  mocidade, 

A  tinham  preservado  da  velhice, 

Tal  como  haviam  feito,  noutros  tempos, 

Segundo  a  lenda  resa,  a  Helena,  a  linda, 

Láctea  filha  de  Tyndaro  e  de  Leda, 

Que  aos  cem  anos  ainda  possuia 

As  graças  e  a  frescura  dos  dezoito. 

Desde  a  sua  longínqua  puberdade 

Sentira  grande,  decidida  queda 

Para  os  doces  enredos  amorosos  ; 


58  O   CAVALEIRO  DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS 

E  mal  via  um  varão,  caduco  ou  moço, 
Logo  o  desejo  lhe  assaltava  o  espírito 
De  lançar-se,  arrojada,  de  cabeça, 
Da  paixão  nos  abismos  mais  profundos. 


Finalmente  casada  com  um  primo 
Molengão  e  enfermiço,  cujo  corpo 
Era  um  canteiro  eterno  de  leicenços, 
O  antegosado  e  anciado  matrimónio 
Foi-lhe  uma  decepção  tristonha,  amarga, 
Uma  rosa  esfolhada  ao  ser  colhida  . . . 
Enviuvou  depois  . . .   Gentil  viuva, 
Em  rigoroso  dó,  ficou  á  espera 
Que  a  sábia  Providência  a  desforrasse, 
Trazendo-lhe  p'la  mão  o  Cavaleiro, 
Esbelto  e  namorado,  dos  seus  sonhos, 
O  alto  Cavaleiro  que  devia 
Abrasá-la  d'amor,  atravessando-lhe 
O  irrequieto  sangue  co'as  faúlhas 
Dos  seus  divinos  beijos  langorosos  . . . 
Porém  a  Providência  nesses  tempos 
Já  começava  a  estar  um  pouco  surda . . . 
Sempre  á  espera  do  Eleito  da  sua  alma, 


O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS  5o. 

Esqueceu-se  a  viuva  de  que  os  anos 
Iam  passando  inexoravelmente 
Com  asas  nos  seus  pés ;  e  já  dobrado 
O  tormentoso  cabo  dos  sessenta, 
Ainda  Dona  Yseu  ia  tão  lesta 
Atrás  do  loiro  Amor,  que  muitas  vezes 
Dona  Mór  intervinha  asperamente, 
Machucando-lhe  os  loucos  devaneios, 
Que  seriam,  no  povo  divulgados, 
O  escandaloso  escárneo  da  família. 


Assim,  nessa  africana  e  longa  tarde, 
Emquanto  Dona  Mór  e  sua  filha, 
Cada  uma  em  seu  quarto,  vão  ideando 
Traças  subtis  que  possam  defendê-las, 
Encorajando  a  feminil  tibieza, 
Uma  na  prece  humilde,  outra  no  orgulho, 
A  velha  Dona  Yseu,  como  um  castelo 
Que,  em  vez  de  resistir,  as  portas  abre, 
Já  se  prepara  para  o  sacrifício, 
E  querendo,  vaidosa,  que  a  derrota 
Não  venha  surpreendê-la  em  desalinho, 
Mas  com  o  decoro,  sim,  de  roupas  brancas 


60  O    CAVALEIRO   DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Próprio  de  sua  ilustre  jerarquia, 

Dum  velho  e  chapeado  arcaz  flamengo 

Tira  uma  anágua  de  espumosas  rendas, 

Uma  camisa  de  aracnídeo  lenço, 

Um  par  de  meias,  que,  na  mão  premidas, 

Duma  noz  o  volume  alcançariam, 

E,  completando  o  seu  trajar  de  vítima, 

Uns  agudos  chapins,  uma  radiante, 

Bela  touca  de  felpa  d'oiro  fiado, 

E  uma  opa  roxa,  de  veludo  brando, 

Com  botões  sumptuosos  de  ametista. 


Quanto  a  Beatriz,  assim  que  entrou  na  alcova, 

Ante  uma  Virgem  se  ajoelhou,  de  prata, 

Ingénua  estatueta  bizantina 

De  cabuxões  e  esmaltes  enfeitada, 

Que,  havia  muitos  anos,  a  Rainha 

Dona  Filipa  de  Lencastre  dera 

A  mãe  de  Dona  Mór. 

De  mãos  erguidas, 
De  comoção  tremendo  e  de  receio, 
Com  tal  fervor  jamais  Beatriz  rezara  . . . 


CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  6l 

Mas  emquanto  que  as  preces  dessa  alminha 

Noutros  momentos  de  tristeza  e  angustia 

Logravam  animar  a  imagem  santa 

Que  lhe  sorria  bem  visivelmente 

Com  promessas  suavíssimas  de  amparo, 

Desta  feita,  por  mais  que  a  virgem  loira 

Suplicasse  e  gemesse,  de  joelhos, 

A  Mãe  de  Deus  quedava-se  indif  rente 

Com  a  boca  cerrada  e  os  olhos  quedos. 


Essa  figura  bela  e  compassiva 
Que  tanta  vez  parcera  humanizar-se 
Tal  como  se  o  metal  de  que  era  feita, 
Em  nervos,  carne  e  sangue  se  mudara ; 
Essa  figura  que,  em  passados  dias, 
Toda  animada  p'la  divina  graça, 
Palpitava  qual  viva  creatura, 
Envolvendo  a  donzela  suplicante 
Em  doces  véos  de  compaixão  celeste  ; 
Essa  figura,  agora,  no  momento 
Em  que  Beatriz  se  via  arrebatada 
Num  redemoinho  de  aflição  suprema, 


02  O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS 

Inexpressiva,  inerte,  cega  e  muda, 
Era  somente  uma  preciosa  alfaia 
Anquilosada  nas  severas  linhas 
Da  sua  fria,  hierática  atitude. 


Arremessada  do  jardim,  de  súbito, 
Entra  pela  janela  e  cai  no  soalho, 
Junto  de  Beatriz,  cândida  rosa 
Em  cujos  róseos  tons  se  acusa  o  pejo 
Duma  virgem  no  banho  surpreendida. 


Quem  na  atirou  ?    De  certo  foi  Dom  Sancho 

Que,  no  desejo  de  alcançar  depressa 

De  seus  desejos  lúbricos  o  fito, 

Cansado  de  esperar  que  o  curandeiro 

Lhe  desvelasse  as  mãos  irresistíveis, 

E  pecadoramente,  como  aquele 

Que  duma  ingénua  creancinha  abusa, 

Fazia  d'essa  rosa  imaculada 

A  embaixatriz  de  seus  rogais  intuitos. 


O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS  63 

Ante  esse  lindo  mas  perverso  ultraje. 

Num  ímpeto,  Beatriz  tomou  a  rosa 

Para  a  lançar  bem  longe,  mas  vencida 

Pelos  lânguidos  filtros  que  exalava, 

Não  teve  mão  em  si  que  a  não  cheirasse 

Mais  de  perto,  e,  ao  chegá-la  ao  pé  da  boca, 

Sentiu  que  uma  torrente  impetuosa 

De  fogo  vivo  lhe  corria  as  veias, 

E  que  uma  chama  lhe  crestava  os  lábios, 

Que  entre  as  macias  pétalas  acharam, 

Ainda  quente  e  a  palpitar,  um  beijo  ! 


Lanceada  de  escrúpulos,  tremendo, 

Enojada  de  si  como  se  acaso 

Os  dois  braços  violentos  a  cingissem 

Dum  sátiro  baboso  e  cabeludo, 

Então  Beatriz  caiu  desamparada 

Sobre  o  seu  leitozinho  de  donzela, 

Co'a  impressão  de  que  dentro  do  seu  peito 

Rudemente  um  moinho  velejava 

Dum  furacão  ás  chicotadas  doidas  ! 

Aflitivo  garrote  de  soluços 


64  O    CAVALEIRO   DAS   MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Duramente  apertava-lhe  a  garganta  ; 

Dentro  da  sua  cabecinha  loira 

Estoiravam  pelouros  e  bombardas  ; 

Rútilas  chamas  de  infernal  violência 

Requeimavam,  cruéis,  seus  olhos  verdes  ; 

Até  que  enfim,  com  os  ímpetos  furiosos 

Dum  oceano  irado  rebentando  um  dique, 

Toda  essa  dor  profunda  e  lancinante 

Rompeu  num  grande  temporal  de  lágrimas. 

Chorou  . . .  chorou  . . .  chorou  como  um  menino 

Perdido  num  pinhal  á  meia-noite  ! 

Chorou  ^  . .  chorou  . . .  chorou  . . .  mas  o  seu  choro, 

A  princípio  convulso  e  desabrido, 

Como  se  repuxasse  fortemente 

Do  seu  coração  trémulo,  apertado 

Pela  brônzea  manopla  dum  guerreiro, 

A  pouco  e  pouco  foi  tomando  um  ritmo 

Velado  e  manso,  de  silvestre  fonte 

Gotejando  em  fraguedos  afofados 

D'avencas  verdes  e  sedosos  musgos  ; 

A  pouco  e  pouco  foi  amolecendo 

Aquela  cruciantíssima  amargura, 

Lançando  enfim  a  extenuada  moça 

Numa  quase  gostosa  sonolência  . . . 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  65 

Agora,  dormitando,  parecia-lhe 

Que  flutuava  sobre  nuvens  brandas 

Na  mansidão  violácea  do  crepúsculo  .  .  . 

A  delicada  rosa,  que  os  seus  dedos 

Inocentes  ainda  seguravam, 

De  novo  a  perturbou,  embalsamando-a 

Numa  onda  de  vagos  amavíos  . . . 

Então  julgou  Beatriz  ver  no  ar  suspensas 

Duas  fosforescências  que  desciam 

Sobre  a  sua  cabeça,  lentamente, 

Tomando,  lentamente,  a  estranha  forma 

De  duas  mãos  singularmente  belas  . . . 

P'ra  ver  melhor,  Beatriz  cerrou  os  olhos  . . . 

E  as  duas  mãos  desciam  sempre,  sempre, 

Cada  vez  mais  distintas  e  formosas, 

Agitando-se  em  leves  movimentos 

De  imploração  fremente  e  apaixonada, 

Como  se  fossem  as  dum  anjo  cego 

A  procura  duma  alma  fugitiva  . . . 

Mãos  de  beleza  nunca  vista,  feitas 

Duma  vaga  matéria  luminosa 

Par'cendo  ao  mesmo  tempo  astros  e  flores, 

Movendo-se  num  halo  de  perfumes 

E  desenhando  nos  macios  gestos 


66  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Promessas,  que  eram  hinos  de  ventura, 

Súplicas,  que  eram  beijos  ajoelhados, 

Bem  via  Beatriz  que  mãos  tão  lindas 

Não  as  tinha  creado  o  escuro  inferno, 

Mas  que  eram  lirios,  sim,  enraizados 

Num  puro  coração  que  Deus  enchera 

De  transcendentes  sonhos  de  Beleza  ! 

E  as  mãos  desciam  sempre,  e  já  tão  perto 

Do  rosto  estavam  da  gentil  dormente 

Que  o  bafo  dela  refluía  delas 

Escaldando-lhe  as  faces  pudibundas. 

E  as  mãos  por  fim  tocaram-na  !  em  tão  doce 

Tão  delicada  e  lânguida  caricia, 

Que  Beatriz  estremeceu  ditosa 

E  caiu  num  delíquio,  qual  se  fora 

Levada  ao  Paraíso  pelos  anjos  .  . . 


Mas,  repentinamente,  abriu-se  a  porta 
E  de  candil  na  mão,  eis  que  Ana  Mosca 
Entrou  para  vestir  a  sua  jóia. 
Do  seu  bem  curto  sono  estrovinhada, 
Semi-tonta,  Beatriz  desceu  do  leito, 
E  alisando  a  lã  alva  do  vestido, 


CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  67 

Que  a  pressão  do  seu  corpo  amarfanhara, 
Dessa  lã  lhe  par'cia  levantar-se, 
Ás  ligeiras  pancadas  de  seus  dedos, 
Uma  pulverescéncia  luminosa, 
Talvez  a  poeira  d'oiro  do  caminho 
Dos  amorosos  sonhos,  onde  andara 
E  donde  agora  vinha  outra,  sentindo 
Dentro  dum  corpo  novo  uma  alma  nova. 


E  olhou  p'ra  a  Virgem  novamente  :  e  a  Virgem 
Sorriu-lhe  cheia  de  materna  graça, 
Encorajando-lhe  a  paixão  nascente 
E  aconselhando-a  a  ajoelhar  submissa 
Aos  pés  do  Amor  que,  perto,  lhe  acenava 
Com  uma  capela  de  inocentes  rosas. 


Então  Beatriz,  chilreando,  entreabre  um  cofre 
E  dele  tira,  já  vaidosa  e  rindo, 
Uma  crespina  de  custosas  pérolas, 
Dois  anéis  resplendentes  de  diamantes, 


68  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

De  rubis  uma  dupla  gargantilha, 
E  pede  a  Ana  o  seu  vestido  verde, 
Feito  de  tesa  lhama  em  cujo  fundo 
Grandes  pinhas  refulgem  d'oiro  ardente. 


—  «  Pentêa-me  depressa  e  põe-me  linda  t  » 
Diz  Beatriz,  sentando-se  num  banco 
De  morado  veludo  recoberto. 


E  a  boa  da  Ana  Mosca,  atarantada 
Com  aquela  mudança  repentina, 
Entre  os  dentes  meteu  o  pente  ebúrneo 
E  começou  a  desfazer-lhe  as  trancas  . . . 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS   IRRESISTÍVEIS  69 


IX 


Nessa  noite,  ao  entrar  na  vasta  sala 
Onde  a  opípara  ceia  fumegava, 
Não  se  conteve  o  ilustre  Dom  Guterre 
Que  não  soltasse  logo  uma  sonora 
E  retumbante  exclamação  de  pasmo, 
Vendo,  ao  ruivo  clarão  bruxoleante 
Dos  tocheiros  chumbados  na  parede, 
O  faustoso  trajar  das  três  senhoras, 
Que  ali  estavam  de  pé,  hirtas  e  mudas, 
Numa  pompa  de  boda  principesca. 
Todas  elas,  vestindo-se  p'ra  a  ceia, 
O  pensamento  tinham  posto  em  Sancho, 
Até  a  fria  Dona  Mor  !  .  .  .  e  todas, 
Não  vendo  que  dess'arte  trairiam 
Os  seus  mais  escondidos  sentimentos, 


70  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS   IRRESISTÍVEIS 

E  entregando,  indefesa,  a  consciência 
A  implacável  força  do  destino, 
Todas  elas  se  tinham  preparado 
Com  tão  dengues  apuros  de  elegância 
Como  se  cada  uma  nessa  noite 
Bailar  devesse  nos  salões  da  corte. 


—  «  Mas  que  é  isto,  Senhoras  ?  Temos  festa  t 
Dizia  Dom  Guterre  examinando-as  : 
«  Virá  el-rei  cear  hoje  connosco  ?  » 


E  em  seguida,  mirando-se  a  si  próprio, 

Continuou  :  —  «  Mas  eu  é  que  não  devo 

«  Ficar  nesta  pobreza  de  beguino  ! 

«  Dae-me  uns  momentos,  que  vou  pôr  depressa 

«  O  meu  pelote  novo,  a  adaga  d 'oiro, 

«  E  o  meu  chapéu  melhor,  o  de  penacho  !  » 


Fez  menção  de  sair  :  mas  de  repente 
Uma  idêa  o  picou,  áspide  viva, 
Petrificando-o  ali  e  incendiando 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  'Jl 

Seus  olhos  que  se  encheram  de  coriscos. 
Da  velha  Dona  Yseu  não  se  admirava  ; 
Mas  da  esposa  e  da  filha  !    Quem  diria 
Que  tão  pudendas,  tão  discretas  damas, 
Renegando,  insensatas,  num  momento, 
Todo  um  passado  dMionra  e  de  pureza, 
Logo  ao  primeiro  aceno  do  Diabo, 
Sem  resistência  se  lhe  entregariam, 
E  em  vez  de  erguerem  frios  baluartes 
Contra  os  assaltos  da  lascívia  impura, 
Com  tal  despejo  ao  seu  encontro  iriam 
Aliciantes  galas  ostentando  ? 


Doido  furor  lhe  requeimava  as  fontes  : 

Dommou-se,  porém  ;  encaminhou-se 

Para  a  mesa  e,  chamando  a  activa  serva, 

Que  a  capricho  também  se  ataviara, 

Friamente  lhe  disse,  d'olhos  baixos  : 

—  «  Chama  o  senhor  Dom  Sancho  e  serve  a  ceia  \  » 


Quando  Dom  Sancho  entrou  airosamente, 
Envolto  num  tabardo  de  veludo, 


72  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Todos  viram  a  íntima  surpresa 
Com  que  ele  olhava  a  demudada  prima 
Em  cujo  seio  virginal,  segura 
Por  um  broche  de  pérolas,  sorria 
A  rosa  que  o  mancebo  lhe  atirara. 


Abancaram  á  mesa  silenciosos  . . . 
Ana  Mosca  servia,  e  Dom  Guterre, 
Mexendo  a  canja  e  recalcando  os  ímpetos 
Que  o  coração  inquieto  lhe  infernavam, 
Perguntou  de  repente  ao  desterrado  : 

—  «  Com  tamanho  calor,  que  significa 
«  Esse  tabardo  preto  ? 

—  «  Qui?  fa^er-vos 
«  Uma  surpresa  !  »  diz  o  moço,  erguendo-se ; 
E  então,  lançando  fora  a  negra  capa  : 

—  «  Vede  como  já  tstou  são  e  escorreito  ! 
E  estendeu  sobre  a  mesa,  nuas,  brancas, 
As  suas  belas  mãos  sem  ligaduras  ! 


A  torre  de  Babel,  p'la  vez  segunda, 
Parecia  ruir  naquela  sala, 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  JO 

Tal  o  terror,  a  confusão  e  os  gritos 
Que  a  suculenta  ceia  interromperam. 
Dona  Mór  com  as  mãos  tapava  os  olhos ; 
Desmaiando,  Beatriz  no  chão  fazia 
Rolar  dois  cuvilhetes  de  gelêa  ; 
Ana  Mosca,  sem  tino,  pespegava 
Com  um  leitão  assado  no  regaço 
Da  pobre  Dona  Yseu,  que,  vendo  o  bicho, 
Julgou  ver,  tão  grande  era  o  seu  desvairo, 
Um  fructo  já  dos  seus  novos  amores  ; 
E  Dom  Guterre,  doido,  enfim  rendido 
Aos  prudentes  avisos  do  irmão  crúzio, 

—  «  Fujam  !   Fujam  1  »  dizia  ás  três  senhoras ; 
E  ao  mesmo  tempo,  como  um  Deus  irado, 
Cerrando  os  punhos,  espumando,  aos  urros, 
Dando  patadas  que  eram  terramotos, 

Fazia  cachoar  sobre  Dom  Sancho 
Lufadas  de  praguentos  vitupérios  : 

—  «  Fora !   Fora  daqui,  vil  castelhano, 
«  Que  assim  pagas  a  minha  caridade, 

«  Tentando  deshonrar  tão  nobre  casa  I 
*  Fora,  vil  corruptor  !  » 

Debalde  Sancho 
Pedia  a  explicação  dessa  tormenta, 


74  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Dessa  onda  de  insultos  que  o  afogavam  ; 

O  velho  não  no  ouvia,  e  arrebatado 

P'la  ira  mais  fremente,  ei-lo  que  rompe 

A  gritar  aos  criados  que  se  acercam, 

P'lo  troar  das  injúrias  atraídos  : 

—  «  Tirae  da  minha  vista  sem  demora 

«  Essa  imundície  humana  !    Vá,  depressa  ! 

n  Amarrae-o  sem  dó,  ponde-mo  fora  l 

«  Não  quero  vê-lo  mais !    E  lá  na  estrada 

«  Cortai-lhe  as  mãos  obscenas !    Qiie  ele  veja 

«  Os  seus  cotos  sangrar,  por  justa  pena, 

■  Como  sangrando  me  pintou  há  pouco 

«  Os  do  alfer'smártir  !    Não  lhe  ouçais  as  súplicas ! 

o  Cortai-lhe  as  mãos  1  •> 

Então  Lourenço  Gato, 
Porqueiro  atarracado,  d'ar  simplório, 
Mas  como  Hércules  forte  e  decidido, 
Cumpre,  ajudado  pelos  companheiros, 
As  ordens  do  senhor,  levando  Sancho 
Cujos  gritos  inúteis  breve  expiram 
Rija  e  barbaramente  amordaçados. 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  -]5 


X 


No  pó  da  estrada,  á  doce  luz  da  lua, 
Todo  enleado  de  cordas,  remordendo 
A  estopa  que  lhe  serve  de  mordaça, 
Debalde  o  pobre  Sancho  se  contorce, 
Cuidando  ver  chegar  a  todo  o  instante 
O  feroz  abegão  partido  á  busca 
Do  machado  que  as  mãos  deve  cortar-lhe. 


Range  o  portão  da  quinta,  e  dele  avança 
Não  o  servo  cruel,  mas  sim  o  vulto 
Airoso  de  Beatriz  que,  de  joelhos, 
Cai  desvairadamente  ao  pé  do  amante, 
E  que  ao  desabafar-lhe  a  seca  boca 
De  lágrimas  piedosas  lh'a  refresca  . . . 


70  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Quer  desatar-lhe  os  nós  das  rijas  cordas, 
Mas  os  seus  dedos  são  tão  delicados 
E  aqueles  nós  tão  duros  !    Porém,  breve, 
O  industrioso  Amor,  que  lestamente 
Acode. sempre  aos  que  lhe  são  devotos, 
Ilumina-a  :  Beatriz  abre  a  escarcela 
Tira  um  punhado  de  moedas  d'oiro, 
Pelos  creados  as  reparte  e  diz-lhes  : 
—  «  Desatai  estes  nós  e  retirai-vos  t  » 


Lourenço,  deslumbrado,  os  nós  desata, 

Com  a  sinistra  o  oiro  abocetando, 

Mas  depois  cái  em  si,  e  então  objecta  : 

—  «  E  o  que  hei-de  eu  responder  quando  o  meu  amo 

«  Me  perguntar  p'las  mãos  deste  fidalgo? 


—  «  Olha  t  »  volve  Beatriz,  auxiliada 

Novamente  p'lo  Amor,  e  aurificando 

De  novo  as  mãos  do  sórdido  porqueiro  ; 

«  Na  forca  ao  pé  do  rio,  hontem  á  tarde, 

«  Um  enforcado  vi ;  vai  lá,  correndo, 

«  Corta-lhe  as  mãos  e,  ensopando-as  ambas 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  77 

«  Dum  animal  qualquer  no  sangue  quente, 
«  Leva-as  depois  ao  teu  senhor !  » 

Lourenço 
E  os  outros  serviçaes,  contando  as  moedas, 
Partem,  chalrando,  em  direcção  do  rio, 
No  instante  em  que  o  abegão  enfim  regressa, 
Cantarolando,  de  machado  ao  hombro. 


—  «  E  agora  foge !  »  diz  Beatriz  a  Sancho 

Que  as  mãos  lhe  aperta  comovidamente  : 

«  Tens  amigos  em  Coimbra,  que  um  te  esconda, 

«  E  que  amanhã  vá  ter  comigo  á  igreja 

«  De  Santa  Clara,  mal  desponte  o  dia. 

«  Por  êle  saberás  noticias  minhas  . . . 

«  Adeus  l    Tem  fé  em  mim!  » 

Um  longo  beijo 
Docemente  casou  aquelas  almas 
Sob  a  benção  puríssima  da  lua  . . . 


Partiu  Sancho. 

Beatriz,  voltando  a  casa, 
Depois  daquela  mediação  heróica, 


78  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

Pé  ante  pé,  parou  junto  da  sala, 

Onde  seu  pobre  pai,  numa  estadela, 

Amarrotado  e  triste,  era  o  joguete 

De  dois  contradictórios  sentimentos  : 

Dum  lado,  a  sua  natural  bondade, 

Do  outro,  o  seu  orgulho  vigilante. 

Orgulhoso,  par*cia-lhe  ainda  escasso 

O  castigo  inumano  que  impuzera, 

Mas,  bondoso,  acusava-se  a  si  próprio 

De  tão  duro  ter  sido  e  tão  severo. 

Umas  vezes  rugia,  outras  chorava  . . . 

E  Beatriz,  a  meiga  e  compassiva, 

Vendo-o  sofrer  assim,  ânsias  sentia 

De  ir  socegá-lo,  de  contar-lhe  tudo, 

De  lhe  abrir  os  segredos  da  sua  alma ; 

Mas  o  receio  de  que  aquela  sanha, 

Tudo  sabendo,  logo  se  ateasse, 

Acobardou-a,  cautelosamente, 

Que  um  pai  é  muito,  mas  bem  mais  um  noivo 


E  uma  hora  passou  .  .  .  até  que  ao  cabo 
Dessa  hora  secular,  inextinguível, 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  79 

Bárbara  estropeada  fez  ouvir-se  : 
Os  criados  voltavam,  tendo  á  frente 
Lourenço  Gato,  que  nas  mãos  trazia 
Uma  pequena  trouxa  ensanguentada. 


—  «O  que  irares  ai?  »  grita  o  fidalgo, 
Mais  pálido  ficando  que  um  defunto. 


—  «  Cumpridas  são,  senhor,  as  vossas  ordens !  » 
Diz  o  porquei;  o. 

Dom  Guterre,  erguendo-se, 
Aperta  as  mãos  convulsas  na  cabeça, 
Quer  falar  e  não  pode,  cai  redondo 
Na  orgulhosa  estadela  de  carvalho, 
Bate  fortes  punhadas  nos  joelhos, 
Pucha  as  guedelhas  n'um  furor  leonino 
E  rompe  enfim  : 

—  «O  que  é  que  vós  fizestes  ? 
«  Pois  não  vis/es,  estúpidos  !  que  eu  estava 
«  Doido,  doido  de  todo,  quando  há  pouco 
«  Vos  disse  o  que  vos  disse,  delirando  ? 
«  E  cortastes-lhe  as  mãos  ?   Ah  !  miseráveis, 


8o  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 


«  E  trajeis-me  essas  mãos  ?    Ah  !  por  piedade, 
a  Não  rias  mostreis  !    Levai-as,  escondei-m  as  !  * 


Nisto  soam  ao  longe  três  pancadas 

No  portão,  ecoando  cavamente, 

Como  argoladas  lúgubres  batidas, 

No  pavoroso  dia  do  Juizo, 

P'la  própria  mão  de  Deus,  á  brônzea  porta 

Do  mausoléu  dum  imperador  perverso  ! 


—  «  Qiiem  será  ?    Ide  ver !  » 

Passado  um  instante, 
Volta  um  dos  servos  que  a  seu  amo  entrega 
Uma  carta  selada. 

Dom  Guterre 
Ergue-se  lentamente,  cambaleando, 
Aproxima-se  mais  dum  dos  tocheiros, 
Quebra  o  lacre  que  fecha  o  pergaminho, 
E  a  meia-voz,  sempre  a  hesitar,  soletra 
As  seguintes  palavras  de  Dom  Bento  : 
Senhor  Irmão  :  Tal  peso  estou  sentindo 
Sobre  a  minha  consciência  atribulada, 


CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  Si 

Que,  não  podendo  ir  já,  visto  que  a  regra 
Me  impede  de  sair  caída  a  noite, 
Venho  por  estas  leiras  desdizer -me 
Do  que  sobre  Dom  Sancho  vos  disse  hoje. 
Folheando  aquele  livro  de  linhagens 
Que  me  levara  a  imaginar  Dom  Sancho 
Neto  do  antigo  conde  Dom  Garcia, 
Nele  acabo  de  achar  uma  apostila 
Donde  se  vê  que  o  vosso  hóspede  ilustre 
Nada  tem  de  comum  com  o  mesmo  conde. 
Confesso  humildemente  o  meu  engano, 
E  em  pessoa,  amanhã,  mal  rompa  o  dia, 
Irei  pedir  perdão  ao  nobre  moço 
Do  agravo  que  lhe  fif  por  falsa  crença. 


Lívido,  amarfanhando  o  pergaminho 
Numa  louca  explosão  de  desespero, 
Torcendo  as  mãos,  o  desvairado  velho 
Grita  para  os  atónitos  criados  : 
—  «  O  que  eu  fi%  !    O  que  eu  fi%  a  um  inocente  ! 
«  Por  verdade  aceitando  uma  calúnia, 
«  E  uma  calúnia  pueril  t  sem  mesmo 
a  Primeiro  o  ter  interrogado  e  ouvido, 
6 


82  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

«  Eis  que  de  raiva  num  fatal  assomo, 

«  Nutn  incendiado  acesso  de  loucura, 

<•  Lhe  fif  cortar  as  mãos,  como  se  o  pobre 

a  Fosse  um  vil  rogador  ou  um  parricida  l 

«  Mas  que  fadeis  ai?   Ide  buscá-lo  ! 

«  Ide  l    Correi  I    Traçei-mo  sem  demora  t 

«  E  não  no  magoeis,  tende  cuidado  ! 

u  Vamos !    Trajei-mojá!  E  tu,  Lourenço, 

a  Corre  a  Coimbra,  chama  quem  no  cure, 

«  Chama  um  fisico,  dois . . .  quantos  achares  !  » 


Mas  Beatriz,  surgindo  de  repente, 
Beatriz  que  tudo  ouviu,  chorando  e  rindo, 
Corre  a  abraçar  seu  pai : 

—  «  Meu  Pai,  sossega ! 
«  Sancho,  o  querido  Sancho  da  mxnKalma, 
«  Nem  uma  gota  só  perdeu  de  sangue ! 
«  Mandaste-lhe  cortar  as  mãos,  é  certo, 
<•  Mas  eu,  ouvindo  a  bárbara  sentença, 
«  Corri  atrás  dos  servos  que  o  levavam, 
«  Salvei-lhe  as  mãos  p'las  quaes  eu  dera  as  minhas, 
«  E  para  te  enganar,  disse  a  Lourenço 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  83 

«  Que  viesse  entregar  te  as  dum  enforcado 
«  Que  eu  tinha  visto  a  baloiçar  na  forca  !  » 


—  «  Será  verdade,  filha,  o  que  me  di^es  f 
Pergunta  D.  Guterre  :  «  Mas  aquelas 
(  E  aponta  para  a  trouxa  ensanguentada  ) 
«  Inda  tintas  estão  de  sangue  fresco ! 


«  Mas  ê  dum  galo !  »  dif  Lourenço  Gato. 


E  Beatriz  prosegue  carinhosa  : 
—  «  Enganámos-te  Pai !  mas  tu  perdoas, 
«  Não  é  verdade  ?    Foi  por  bem  o  engano, 
«  Qjie  tu  não  eras  tu  dando  tal  ordem  !  » 


—  «  Ah !  Deus  te  pague,  filha  da  minJi  'alma, 

«  Qiie,  salvando-o,  a  mim  próprio  me  salvaste, 

«  Porque  se  êle  morresse,  eu  morreria 

«  Devorado  de  penas  e  remorsos  ! 

«  Mas  onde  è  que  êle  está  1    Qitero  pedir-lhe 


84  O    CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS 

a  De  joelhos,  sim,  filha,  de  joelhos, 
«  Que  me  perdoe,  que  esqueça  o  que  lhe  disse, 
«  Que  tenha  dó  de  mim  !   Quero  abraçar-vos, 
«  A  êle  e  a  ti  no  mesmo  estreito  abraço ! 
«  Mas  onde  é  que  êle  está  ?    Onde  está  êle  f 


—  «  Não  sei,  não  sei ...»  diz  Beatriz  corando 
«  Não  sei . .  .  mas  amanhã,  de  manhãsinha, 
«  Logo  que  rompa  o  sol  heide  traçer-to, 
«  Para  que  tu  nos  abençoes  a  ambos !  » 


Pae  e  filha  abracaram-se  chorando 


O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS  58 


Xí 


Sancho  e  Beatriz  casaram  . . . 

Alguns  dias 
Depois  da  alegre  e  sumptuosa  boda, 
Por  mansa  e  rósea  tarde  de  setembro, 
Dom  Guterre  e  Dom  Bento  caminhavam 
A  beira  do  Mondego,  conversando 
Sobre  coisas  da  sua  mocidade, 
Quando  entre  os  salgueirais  viram  ao  longe 
Sancho  e  Beatriz  que  iam  de  braço  dado  . .  . 
E  o  crúzio  exclama  : 

—  «  Como  sao  felizes  ! 
«  E  pensar  eu  que  só  por  um  milagre 
«  Ê  que  não  destrui  tanta  ventura ! 
«  Eu  è  que  merecia  as  mãos  cortadas ! 


86  O    CAVALEIRO    DAS    MÃOS    IRRESISTÍVEIS 

«  Não  digo  as  mãos,  mas,  sim,  estas  orelhas 

«  Que  surdas  sejam  se  não  cobram  tino ! 

«  Vá  lá  a  gente  acreditar  naquilo 

«  Que  o  mundo  di% !   A  vof  do  mundo  é  falsa, 

«  Não  é  a  vo%  de  Deus !   Dá-nos  por  tolos 

«  Os  que  menos  o  são,  e  por  virtuosos, 

«  Ladrões  capares  de  roubar  seus  filhos ! 

«  Eu  é  que  tenho  sido  um  bom  palerma, 

«  Acreditando  em  tudo  o  que  me  di^em  . . . 

«  Mas  agora  já  sei,  ninguém  me  engana ! 

«  Do  Prior-mór  de  Santa  Cru;,  dipa-se, 

«  Antes  de  o  escolhermos,  que  era  um  sábio 

«  E  mais  que  um  sábio,  um  santo ;  eis  se  não  quando 

«  Nos  sái,  assim  que  ao  báculo  se  arrima, 

«  Além  dum  mariola,  um  grande  bruto ...» 


Escurecia . .  . 

Sempre  conversando, 
Os  dois  irmãos  voltavam  para  casa 
Quando  os  dois  noivos  foram  ter  com  eles, 
Rompendo  alegres  dentre  madresilvas  ; 
Rio  acima  singrava  um  barco  á  vela ; 
E  das  Trindades  o  saudoso  toque, 


O   CAVALEIRO   DAS   MÃOS   IRRESISTÍVEIS  87 

Alagando  de  unção  religiosa 
As  ínsuas  de  nebrina  fumegantes, 
Vibrava  ali  bem  perto,  em  Santa  Clara, 
Num  cristalino  repicar  de  sinos  . . . 

Coimbra.    24-XH-1915. 


ACABOU  DE  SE  IMPRIMIR 
ESTE  LIVRO  AOS  DOZE  DIAS 
DO  MÊS  DE  AGOSTO  DE  MIL 
NOVECENTOS  E  DEZESEIS 
NA  TIPOGRAFIA  DO  EDITOR 
FRANÇA  AMADO,  SITA  Á 
RUA  DE  FERREIRA  BORGES 
NA      CIDADE      DE     COIMBRA. 


ATTOAAnMflg 


^sEs&rs-r&j-ajla. 


/ 


PLEASE  DO  NOT  REMOVE 
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UNIVERSITY  OF  TORONTO  LIBRARY 


PQ 

9261 

C^C3 


Castro,  Eugénio  de 

0  cavaleiro  das  mãos 
irresistiveis 


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